A HISTÓRIA DE "MORENA DE ANGOLA": Mama África

Nesses tempos de canelas adornadas com dispositivos bem menos charmosos, uma canção que remete novamente a gestos libertários da nossa boa e velha MPB.

O parceiro André Vasconcelos, fiel seguidor deste blog, sugeriu. Não conhecia a história, pesquisei. E realmente, é boa demais pra ficar de fora. 

Morena de Angola é uma composição muito marcante, fruto de uma parceria musical poderosa: Chico Buarque e Clara Nunes.

Clara e Chico, com João do Vale, em 1982: conexão Brasil/Angola


A história é meio longa, mas boa de se ler.

Em 1980, um grupo com cerca de 60 artistas brasileiros partiu para Angola rumo a uma série de apresentações no Projeto Kalunga. 

Mineira de Paraopeba, Clara era casada à época com Paulo César Pinheiro, velho amigo de Chico. Ainda do tempo dos festivais. Isso facilitou a aproximação com a cantora. 

A dupla, além de Gilberto Gil, Djavan, Martinho da Vila, Dorival Caymmi, João Nogueira, Dona Ivone Lara e Miúcha, dentre tantos, lá foram se apresentar na África. 

Era uma comemoração à recém conquistada independência angolana (em 1975) e uma elite da MPB - notoriamente esquerdista - foi até lá render homenagens ao novo governo - comunista - e ao sofrido povo angolano.

E foi nessa viagem que surgiu a canção. Aliás: só ela, não. Várias.


 Capa do disco Brasil Mestiço, de 1980, que trazia "Morena de Angola"

Mesmo tendo sido o primeiro regime a reconhecer a independência do país, a ditadura militar brasileira não via com bons olhos aquele monte de artistas brasileiros em uma Angola alinhada com Fidel, Brejnev e cia. 

Os jornais daqui mal deram bola, sequer enviaram correspondentes para acompanhar. Só começaram a falar alguma coisa porque recebiam informações das agências de notícias portuguesas. 

Mesmo assim, notinhas. 

Mas era muita gente boa junta pra, simplesmente, se ignorar.

João Nogueira, D. Ivone Lara, Clara e Martinho em 1980: redescobrindo a África

O contexto era o seguinte: apesar de terem se livrado dos portugueses após 400 anos, os angolanos passaram grandes perrengues com uma Guerra Civil sangrenta (clique aqui para ler a respeito no site de O Globo). Algo que só terminou em 2002, com mais de dois milhões de mortos e outro milhão e tanto de refugiados pelo mundo. 

Um horror. 

Naquele primeiro momento, o MPLA (sigla para Movimento Popular de Libertação de Angola; leia-se "emepéla"), que se tornara governo, promovia o Projeto Kalunga para celebrar a libertação com um intercâmbio cultural entre irmãos lusófonos.

 Soldados do MPLA pela Independência de Angola: ideais Marxistas

Os artistas estiveram em vários lugares, mas foi em Benguela, na Praia Morena, que parece ter surgido a ideia da letra. E nessa mesma cidade, no Morro da Catumbela, eles ficaram conhecendo o ritmo chamado de moçambique, e a tradição dos dançarinos com chocalhos presos nos tornozelos. 

A letra traz muitas referências à cultura do país - das tradições culinárias até a terrível Guerra Civil.
 

MORENA DE ANGOLA
(Chico Buarque - 1980)



Morena de Angola que leva o chocalho 
amarrado na canela
Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que 

mexe com ela (2x)
Será que a morena cochila 
escutando o cochicho do chocalho
Será que desperta gingando 

e já sai chocalhando pro trabalho

Morena de Angola (...)

Será que ela tá na cozinha 

guisando a galinha à cabidela
Será que esqueceu da galinha 

e ficou batucando na panela
Será que no meio da mata, na moita, 
a morena inda chocalha
Será que ela não fica afoita pra 

dançar na chama da batalha
Morena de Angola (...)

Passando pelo regimento 

ela faz requebrar a sentinela

Morena de Angola (...)

Será que quando vai pra cama 
a morena se esquece dos chocalhos
Será que namora fazendo 

bochincho com seus penduricalhos
Morena de Angola (...)

Será que ela tá caprichando 

no peixe que eu trouxe de Benguela
Será que tá no remelexo 

e abandonou meu peixe na tigela
Será que quando fica choca põe 
de quarentena o seu chocalho
Será que depois ela bota 

a canela no nicho do pirralho

Morena de Angola que leva o chocalho 
amarrado na canela
Eu acho que deixei um cacho 

do meu coração na Catumbela
Morena de Angola que leva 
o chocalho amarrado na canela
Morena, bichinha danada, 

minha camarada do MPLA


Vale recordar que foi graças ao estreitamento de relações entre artistas de Brasil e Angola que a MPB recebeu uma avalanche de letras que falavam sobre aquele país naquele ano de 1980. 


Clique para ouvir Lá de Angola com João Nogueira, do disco Boca do Povo


Chico Buarque e João Nogueira compuseram, respectivamente, Morena de Angola e Lá de Angola, Martinho da Vila gravou Velha Chica, de Valdemar Bastos, e Djavan lançou Luanda e Nvula Ieza Kia (A Chuva Já Chegou), de Felipe Mukenga. Os dois últimos, compositores angolanos.


 Artistas angolanos no Brasil, ao lado de Martinho da Vila e Alcione: ecos do Kalunga

Mas Chico só entregou a canção pra Clara Nunes aos 45 do segundo tempo - parecido com o que fizera com Tom Jobim em Anos Dourados (outra história ótima, que contaremos em breve).

Ela encomendara como presente, pro disco que preparava já fazia um ano, ainda em Angola. Brasil Mestiço estava pronto pra ser lançado naquele 1980, mas nada de a música ser entregue. Foi depois de um telefonema, cobrando do compositor o regalito, que Clara recebeu a preciosidade. 


 Clipe de Morena de Angola no Fantástico, antes mesmo de a música sair em vinil


E veio a ser a música de maior sucesso no repertório da mineira. Ela voltaria ao continente africano em diversas ocasiões, de tão identificada com a música e a cultura. 

Tragicamente, Clara Nunes morreria apenas três anos depois do lançamento de Morena de Angola. Oficialmente, vítima de choque anafilático durante uma simples cirurgia de varizes.




Pesquisa: Robson Leite




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