Rio de Janeiro, 1969.
Sebastião Rodrigues Maia é um Zé Ninguém, morando de favor no bairro de Botafogo. O endereço é na Rua Real Grandeza, 171 - número bastante sugestivo naqueles tempos de alta pilantragem. Na base do "Mi casa, su casa", tornara-se hóspede do amigo cantor Fábio, paraguaio, já famoso na época pela música Stella. Ele e o empresário Glauco dividem o apartamento, que vive em constante zorra graças a altíssima rotatividade de frequentadores e - especialmente - frequentadoras.
Rola de tudo nos dois quartos. Sebastião, que é apenas um agregado, dorme no sofá sala. Um pouco deslocado das ações, como podemos imaginar. As mulheres ainda não enxergavam nele o poder de sedução dos grandes astros da música. Mesmo tendo no bolso da camisa um sucesso grandioso: ele simplesmente é o autor de Não Vou Ficar, eternizado voz de Roberto Carlos que seria gravado depois por ele mesmo e, décadas mais tarde, pelo Kid Abelha. Canção que todo mundo manja. Mas o primeiro compacto simples, gravado só com canções autorais um ano antes, não teve o mesmo alcance.
Portanto, ele permanece um desconhecido, morando de favor em casa de amigos, à espera de que alguma coisa incrível possa acontecer pra sair daquela vidinha muito mais ou menos.
Nem tudo está perdido. Os caras ficam lá no "bem bom", enquanto nosso compositor solitário busca se encontrar na arte. Quanto mais barulho de vuco vuco nheco nheco vindos das camas rangentes de seus companheiros de casa, mais ele inventa trilhas sonoras à base de muita raiva, despeito e algumas lágrimas. Tudo sob a tutela de seus únicos e reais companheiros inseparáveis: o gravador de fita e o violão, para registrar todos os versos que anotasse e as consequentes melodias. Gordinho, sem dinheiro e com a autoestima lá no pé, Sebastião sabe exatamente o que fazer com as mãos. E essa frase não contém qualquer eufemismo. É música mesmo.
A rigor, a alma do poeta tem os elementos perfeitos para fazer grandes canções. Só falta a inspiração certa. E ela surge num dos arroubos festeiros da dupla Fábio e Glauco. Eles e as namoradas da vez são os convidados de honra para um evento VIP fora do Rio. Infelizmente, Sebastião não reunia atributos suficientes para fazer parte da comitiva e fica sozinho no apartamento. Cansado de dormir no sofá da sala - chamado de "dromedário" devido às dramáticas ondulações do estofamento -, resolve habitar o quarto de Glauco na ausência do sujeito.
É quando percebe diante dele a inspiração que tanta solidão e sentimento de derrota necessitam.
É quando percebe diante dele a inspiração que tanta solidão e sentimento de derrota necessitam.
Um pôster na parede, em frente à cama, desperta a atenção do compositor. A imagem de uma praia paradisíaca do Taiti com uma morena lindíssima em primeiríssimo plano, abre a janela da imaginação de Sebastião para algumas frases lindas em meio a tanta carência afetiva. Talvez o perfume de alguma namorada do Glauco, que eventualmente possa ter permanecido nos lençóis e travesseiros, servissem para aumentar ainda mais a inspiração. Consta que ele pega o violão e grava, numa sentada, Azul da Cor do Mar:
Ah! Se o mundo inteiro me pudesse ouvir
Tenho muito pra contar
Dizer que aprendi
Tenho muito pra contar
Dizer que aprendi
E na vida a gente tem que entender
Que um nasce pra sofrer
Enquanto o outro ri
Que um nasce pra sofrer
Enquanto o outro ri
Mas quem sofre sempre tem que procurar
Pelo menos vir achar
Razão para viver
Pelo menos vir achar
Razão para viver
Ver na vida algum motivo pra sonhar
Ter um sonho todo azul
Azul da cor do mar
Ter um sonho todo azul
Azul da cor do mar
Não é grande, pode reparar. São apenas duas estrofes e, pasmem, não tem sequer refrão. Mas traz uma carga de emocional incalculável, de rara inspiração. Um sucesso eterno do pop nacional. Quando o parceiro Fábio volta do evento, é logo apresentado à obra. O gringo pira e enxerga o futuro. Pra ele, Sebastião havia finalmente encontrado a grande composição de uma vida inteira. Exagero? Logo a profecia se confirmará. Sebastião deixará o desconfortável dromedário da sala da casa do amigo e alcançará, enfim, a fama. Isso após gravar o primeiro álbum de sucesso em 1970. No repertório, além de Azul da Cor do Mar, temos Coronel Antônio Bento, Primavera e Eu Amo Você. É até sacanagem.
E Sebastião Rodrigues Maia seria finalmente reconhecido por todo Brasil como o primeiro e único Tim Maia. Nos anos seguintes, ele emplacaria dezenas de outros sucessos geniais. Composições que seguiam quase sempre o mesmo clichê: histórias de amor malsucedidas. Nem por isso, deixou de gravar canções felizes e festivas, tendo como base a soul music, com levadas de muita brasilidade. O diferencial que acabou lhe consagrando: uma produção musical de primeira e a voz privilegiada, poderosíssima.
Os calos nas mãos, de tanto tocar violão para escapar dos recalques nos dias mais solitários, valeram a pena ou não valeram?
Pesquisa: Robson Leite
Comentários
Postar um comentário