Escrever é uma arte.
Dar sentido ao que se quer realmente dizer com o que se escreve, mais ainda. Vale pra música. As sutilezas embutidas numa composição chegam a confundir. Às vezes a entonação pode mudar o sentido de uma frase inteira. Ela pode carregar ironia, rancor, prepotência, raiva e, ainda assim, parecer a expressão do mais puro amor. É o que acontece com a letra de Como Eu Quero, sucesso do primeiro disco do então Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens (sic). Como Eu Quero foi uma das primeiras canções da banda a grudar no ouvido daquela geração. A
letra remete a alguém que estava querendo muito alguém. O verso "Eu quero
você/como eu quero" dá a impressão de um reforço romântico, quase
dramático, para uma ideia de um querer imenso. Certo?
PÉÉÉÉ!!! Nada disso. A história por detrás é bem menos melosa que essa.
PÉÉÉÉ!!! Nada disso. A história por detrás é bem menos melosa que essa.
As bandas do recém instalado circuito pop daqueles loucos anos 1980 eram assim. Carregavam nomes extravagantes, que tentavam ser irreverentes. Especialmente no "sobrenome". Os Titãs nasceram "do Iê-Iê", os Paralamas eram "do Sucesso", o João Penca de Leo Jaime tinha "Miquinhos Amestrados" no nome. E por aí vamos. O Kid era, talvez, a assinatura de banda mais bizarra. Abóboras Selvagens era, certamente, mais impactante do que Chrisma, banda que tinha Leoni como vocalista quando conheceu Paula Toller, na PUC Rio, em 1981. Entre idas e vindas, o casal, mais o saxofonista George Israel, o batera Beni Borja e o guitarra Pedro Farah, são os fundadores do grupo. O guitarrista Bruno Fortunato veio depois e acabou se tornando um dos rostos mais bonachões da banda, que mudou muito até chegar ao disco.
Mas não estamos aqui pra falar sobre nomes, e sim pra contar histórias de músicas. O disco de estreia da banda foi Seu Espião, de 1984, que já nasceu fazendo sucesso no rádio e nos primeiros videoclipes da TV. Além da canção que dava nome ao álbum, o lado A tinha simplesmente Fixação, Alice e Nada Tanto Assim. Como Eu Quero abria o lado B do disco, menos importante, que tinha faixas fortes como Por Que Não Eu? e Pintura Íntima. Todas estouraram num disco com letras adocicadas e baladas românticas, com alguma alegria, e uma sonoridade absolutamente diferente do que havia nas demais bandas. A começar pela voz inconfundível de Paulinha, num cenário onde os vocais masculinos predominavam.
Não bastasse ser bonita e gostosa, era também dona de uma voz deliciosamente marcante cantando...
Diz pra eu ficar muda
Faz cara de mistério
Tira essa bermuda
Que eu quero você sério
Faz cara de mistério
Tira essa bermuda
Que eu quero você sério
Tramas do sucesso
Mundo particular
Solos de guitarra
Não vão me conquistar
Mundo particular
Solos de guitarra
Não vão me conquistar
Uh eu quero você
Como eu quero
Uh eu quero você
Como eu quero
Como eu quero
Uh eu quero você
Como eu quero
O que você precisa
É de um retoque total
Vou transformar o seu rascunho
Em arte final
É de um retoque total
Vou transformar o seu rascunho
Em arte final
Agora não tem jeito
'Cê tá numa cilada
É cada um por si
Você por mim e mais nada
'Cê tá numa cilada
É cada um por si
Você por mim e mais nada
Uh eu quero você
Como eu quero
Uh eu quero você
Como eu quero
Como eu quero
Uh eu quero você
Como eu quero
Longe do meu domínio
'Cê vai de mal a pior
Vem que eu te ensino
Como ser bem melhor
'Cê vai de mal a pior
Vem que eu te ensino
Como ser bem melhor
Longe do meu domínio
'Cê vai de mal a pior
Vem que eu te ensino
Como ser bem melhor
'Cê vai de mal a pior
Vem que eu te ensino
Como ser bem melhor
Uh eu quero você
Como eu quero
Uh eu quero você
Como eu quero
Como eu quero
Uh eu quero você
Como eu quero
Uh eu quero você
Como eu quero
Uuh
Como eu quero
Como eu quero
Uuh
Como eu quero
Ouvi-la pedir "Eu quero você/Como eu quero" era se sentir um pouco amado também. Mas não era isso que a música queria dizer. A história por detrás é a de um realíssimo romance possessivo, quase tóxico, que acabou virando uma falsa canção romântica. O personagem é o ex-baterista Beni Borja, que à época dos primeiros shows da banda namorava uma garota com traços autoritários marcantes. Ela queria que Beni abandonasse a música para que os dois pudessem viver uma vida normal, ele com um emprego regular que não se aventurando, numa área que parecia não estar dando muitos frutos para o futuro do relacionamento. Paula e Leoni perceberam o imbróglio em que se metera o amigo e compuseram a música. Na verdade, uma suposta "real" da namorada pro pobre do Beni, onde ela exige que ele seja do jeito que ela o quer: alguém que se leve mais a sério, com emprego "de verdade", e não o que parecia o "rascunho" de um adulto, com aquele visual minimalista e mal-vestido de roqueiro brasileiro, tentando conquistá-la com musiquinhas.
Em resumo: um cara do jeito que ela queria e não do jeitão dele mesmo.
Se ferrou, porque o Kid Abelha acabou fazendo um puta sucesso. Beni Borja sairia para produzir outro grupo gigante dos 1980s que foi o Biquini Cavadão. De acordo com o Dicionário Cravo Alvim, ele ainda produziu videoclipes e trilhas para cinema. Em 1988 foi produtor musical do
filme Mistério no Colégio de José Frazão. Seria também diretor e roteirista dos
programas Alta Fidelidade (TVE) e Musicantes (Sambascope - 1997). Atuou
como Diretor Geral da CMT-Brasil entre 1999 e 2000, teve vários
artigos publicados: "II vero Vanilli - Verdade e mentira na era da
música digital" (Caderno de Idéias - Jornal do Brasil/1996) e "O futuro
da indústria da música" (Revista Música e Tecnologia/2000). Foi responsável pelo lançamento das carreiras de Gabriel, o Pensador, do grupo Farofa Carioca, e da trajetória solo do próprio Leoni depois de uma pandeirada em... bom, outro dia falamos sobre isso. Enfim. O Beni Borja realmente se tornou alguém, fazendo do jeito que ELE queria. Já a namorada... bem, não sabemos...
E você nunca mais vai escutar Como Eu Quero do mesmo jeito depois dessa!
Clique para assistir ao videoclipe oficial de 1984
Em tempo: Beni também é (um pouco) responsável pelo nome da banda. Foi ele quem levou a fita-demo para estação de rádio Fluminense FM. Lá, quando perguntado
sobre como deveriam apresentar o grupo responsável pelas músicas, o então batera pegou um pedaço de papel do bolso que tinha vários nomes, que os integrantes levantaram sem chegar a um consenso. Leu o
primeiro.
Deu no que deu.
Pesquisa: Robson Leite
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