A HISTÓRIA DE "MENINO DO RIO": Calor que provoca arrepio

1979, Rio de janeiro.

Baby e Caetano: baianos de hábitos cariocas

Baby Consuelo estava em evidência naquele Brasil de pandeiros e guitarras. Recém saída dos Novos Baianos, a cantora havia emplacado um belo disco de estreia. O nome é bastante sugestivo: O Que Vier Eu Traço trazia heranças sonoras inúmeras do tempo passado com aquela gente bronzeada e cheia de valor com quem viveu sob o mesmo teto durante anos. Além da presença sonora indefectível da guitarra do ainda maridão Pepeu Gomes, havia ainda as colaborações imprescindíveis de Moraes Moreira e Luiz Galvão, todos dos tempos de NB. O disco flertava com as raízes brejeiras do forró, do samba e até do choro, com versões poderosas para Aquarela Brasileira de Ary Barroso e O Fole Roncou de Luiz Gonzaga. Da Bahia veio ainda a faixa Belo Dia, de Gilberto Gil. Com baianos novos e antigos à bordo do bolachão, o voo solo de Baby foi muito bem recebido pelo público. Pro ano seguinte, a gravadora queria mais.

E é aí que entra o carioca da canção.

Pier de Ipanema, anos 1970

A turma da Bahia já vivia no RJ há tempos, frequentando suas praias e delícias afins. Era nas areias escaldantes de Ipanema - no tal Pier que era a ferveção dos anos 1970 - que essa elite musical interagia com uma turma que chegou no cenário da cidade para arrasar: o surfistas. Na verdade, eles já conheciam bem as ondas da cidade desde os anos 1950. Mas o estilo de vida livre e natural encaixou como pé de pato na maneira de ser e de viver das comunidades hippies da geração paz e amor. Era tipos descolados, com parafina no cabelo e pranchas reluzentes, visual de atletas e hábitos lisérgicos. Elementos reunidos que agradavam em cheio tanto Baby quanto os conterrâneos dela. Uma trupe que não só se encantava com estilos de vidas, que conhecia muito bem, como também acabava levando muito dessa iconografia praiana pro trabalho. Um dos destaques dessa geração pegadora de onda era José Arthur Machado, o Peti. Puta homão, loiro, 1,80m, pele curtida de sol, lutador de Jiu-Jitsu, motoqueiro, surfista e, não bastasse, lindão. Fazia bicos como modelo e muso. Ficou amigo dos baianos, de frequentar as mesmas festas e até as casas.

Tinha fama de não pegar só onda.

Dragão tatuado no braço e coração de eterno flerte: Peti, o verdadeiro menino do Rio

Sensual e cativante, Peti era um namorador visceral. Já era aquilo tudo ainda em tenra idade, o que fez dele um profissional da conquista muito cedo. Nunca perdeu a pegada. Traço geracional: o amor livre estava no ar como o cheiro inconfundível da maconha, com todo mundo pegando todo mundo. E vida que seguia. A da Baby, por exemplo, era concluir logo o segundo álbum solo. Pra Enlouquecer ainda tinha forte o DNA dos Novos Baianos, com as participações dos amigos de sempre. Do passado vieram Apanhei-te Cavaquinho, uma regravação maravilhosa com Ademilde Fonseca; e Assanhado, numa parceria espiritual dela com Jacob do Bandolim. Gravou Bob Marley (uma versão de Is This Love chamada É Amor) e pediu música pra Rita Lee, que lhe deu Papo de Anjo. Mas faltava uma do amigo Caetano Veloso. Também pediu pra ele. Em depoimento ao livro Sobre as Letras, Caetano contou a seguinte história a respeito da composição de Menino do Rio:

“Fiz por encomenda da Baby Consuelo, que me pediu uma música para ela cantar para um cara que ela achava bonito, o Peti. Ele, um surfista aqui do Rio, era muito meu amigo, visitava muito a gente, andávamos juntos, íamos ao cinema. Ele foi lá em casa um dia, e enquanto conversávamos me lembrei do pedido da Baby. Eu estava com o violão e a música assim, conversando com Peti e com Dedé (nota do blogueiro: esposa de Caê à época) na sala, cantando baixinho, só para mim mesmo, e ficou pronta ali, em poucos minutos. Então mostrei à Baby, que adorou e gravou. Eu gravei também, porque mostrei aos músicos da minha banda e eles adoraram.”

Peti com Baby: crushes

Vendo as fotos do rapaz logo acima, dá até pra enxergar a canção. A música era bem ele, inteiro. Há quem garanta que a cantora também teria participado dessa reunião em casa de Caetano e Dedé. De qualquer forma, a encomenda logo estaria pronta e gravada, pra sair naquele verão de 1979. Menino do Rio foi a segunda faixa do disco e depois virou tema da novela Água Viva de 1980. É considerado o maior sucesso de Baby Consuelo, um hino de amor ao rio e todos os seus meninos bronzeados. Uma espécie de "resposta" tropicalista à Garota de Ipanema, cheia de graça e bossa, de Tom Jobim.

Menino do Rio
Calor que provoca arrepio
Dragão tatuado no braço
Calção, corpo aberto no espaço
Coração
De eterno flerte
Adoro ver-te
Menino vadio
Tensão flutuante do Rio
Eu canto pra Deus proteger-te


O Havaí seja aqui
Tudo o que sonhares
Todos os lugares
As ondas dos mares
Pois quando eu te vejo eu desejo o teu desejo
Menino do Rio
Calor que provoca arrepio
Toma essa canção como um beijo

Um dos trechos mais lembrados talvez seja o "dragão tatuado no braço". Virou marca registrada daquela geração de surfistas. Consta que o de Peti foi feito em Santos, litoral de São Paulo, no ano de 1974, por uma lenda da tatuagem brasileira: Tattoo Lucky. Ele é considerado o primeiro tatuador profissional do Brasil e aqueles surfistas garanhões todos, quando iam pegar onda por aquelas bandas, acabavam se deixando rabiscar na pele com a arte do moço. Ganhou o apelido porque o nome mesmo era um pouco complicado. O bicho era dinamarquês, chamava Knud Gregersen, um cara que rodou meio mundo antes de vir parar no Brasil, no meio de uma revolução cultural à beira mar. Se deu muito bem, virou referência, mas partiu pra Valhalla muito cedo. Morreu em 1983, com a canção já bombando, mas teve um de seus dragões imortalizado no braço de Peti e na Música Popular Brasileira.

Elenco de Menino do Rio com Di Biase ao centro, ladeado por (sic) Sérgio Mallandro, Evandro Mesquita, Cissa Guimarães e Ricardo Graça Mello

Dois anos antes, na cola do imenso sucesso da música, veio o filme Menino do Rio. Curiosamente, a música de Caetano não está na trilha sonora, dominada pelos novos roqueiros emergentes. O tema era De Repente Califórnia, de Lulu Santos, na voz de Ricardo Graça Mello - filho da atriz Marília Pera. André di Biase, que fazia parte da turminha do pier, encarnou o personagem principal na tela. Mas o roteiro filmado não tinha nada a ver com a vida do menino original.

Essa história é bem pesada.

Tattoo Lucky: o tatuador do dragão

Quase dez anos depois da homenagem musical de Baby e Caetano, José Artur sofreu um acidente feio de moto em 29 de agosto de 1987. Além de ter fraturado o braço em 19 lugares, bateu com a cabeça no meio-fio. Ele estaria sob efeito de cocaína. Passou um bom tempo entre a vida e a morte no hospital, quarenta dias em coma. Ninguém acreditava que o Peti ia escapar com vida. Mas ele deu a volta por cima. Acordou. Só que estava com dificuldade pra falar e ainda parcialmente paralisado. O lado direito do corpo não mexia. Os danos talvez não fossem permanentes, porque começou a apresentar bons resultados na fisioterapia. Amigos contam que ele conseguia, com muito esforço, caminhar. Mas estava claro que ele não seria mais o mesmo. Já não podia surfar, andar de moto, mal dar um passo. O sedutor juvenil já não atraía olhares, que não os de pena por sua condição física. Isso foi um golpe ainda mais difícil, a onda mais complicada de surfar. Deprimido, não aguentou esperar por melhora. Peti morreu aos 32 anos. Se enforcou, na casa dos pais em Ipanema, com a faixa do próprio quimono de Jiu-Jitsu.

A música é gravada até hoje. Já teve como intérpretes ilustres João Gilberto, Maria Rita, Fernanda Abreu e Mart'Nália. Caetano Veloso volta e meia encaixa a canção no repertório de seus shows. A gravação mais recente é a de um encontro com Maria Gadu. Canta-la em seus shows é obrigação de Baby, que entre vindas e idas pelos terrenos do misticismo e da religiosidade, hoje é simplesmente Baby do Brasil. Quanto a Peti, ele continua vivo através dos dois filhos que teve - Igor, com a cantora Lidoka, das Frenéticas; e Victoria, com Mônica Johnsson. Em um artigo para o jornal O Globo no final do ano passado, Mônica (60) relembrou momentos ao lado do pai da filha:

"A vida que tive com Peti não foi um mar de rosas, mas me enriqueceu demais. Conheci pessoas maravilhosas, artistas, surfistas, todo tipo de gente. Sabe quando você tem uma caixa de lápis de cor só com os tons básicos e uma outra com todas as nuances possíveis? A minha caixa hoje é muito mais vibrante e tem tonalidades diversas por causa dessas experiências e da nossa conviv
ência, que durou oito anos. Por causa dele, sou uma Mônica supercolorida.”


Com a ex-esposa Mônica

Menino do Rio é um hino a tudo que é belo, à juventude, à natureza, à liberdade. Como tanta grande canção, é capaz de nos carregar pra outros lugares quando a gente escuta. Eleva nossos espíritos. Na arte de cada um que insiste em regrava-la, a memória de uma força na natureza se faz presente. A arte perpetua momentos, encantamentos e acaba sendo a maior homenagem que alguém pode fazer a outra pessoa.

Vida eterna para Petit.

Pesquisa: Robson Leite


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