Belo Horizonte, 1976
Milton Nascimento e Fernando Brant já vinham de uma parceria musical de mais de uma década. Os dois se conheceram nos anos 1960, graças à amizade de Brant com a família Borges. Moradores do Edifício Levy, no centro de Belo Horizonte, os irmão Márcio, Lô e Marilton foram responsáveis pela reunião musical entre os vizinhos Milton e Wagner Tyso com os agregados da área. Fernando era um deles, ainda estudante de direito na UFMG, mas apaixonado por música e literatura. Nascido no interior de Minas em uma casa com outros nove irmãos, encontrou a liberdade poética que tanto sonhara naquela pequena comunidade sonora da chamada Turma do Levy. Logo de cara, ele e Milton compuseram a clássica Travessia, com a qual disputaram o II Festival da Canção da TV Globo em 1967. A mostra competitiva vinha recheada de compositores do calibre de Chico Buarque, Gutemberg Guarabyra, Vinícius de Moraes e outros. A dupla mineira conseguiu a segunda colocação, superando a Carolina de Chico e ficando atrás, na opinião do júri, apenas da Margarida de Guarabyra.
A parceria continuou por anos a fio, mostrando-se afinada não apenas para os festivais de canções da moda. Os parceiros foram os responsáveis pela trilha sonora do balé que lançou para o Brasil o trabalho dos irmãos Pederneiras com o Grupo Corpo. Maria, Maria nasceu como espetáculo de palco em 1976. Não havia letra ainda. A música remetia às mulheres negras que trabalharam na casa da família Brant em Diamantina. Em especial a Maria, que vivia na beirada da linha do trem em Minas e não poupava esforços para dar educação e dignidade aos filhos. A inspiração nela e em outras mulheres fortes e guerreiras rendeu uma trilha marcante, coreografada pelo argentino Oscar Araiz, que percorreu todo país e levou o Corpo muito além das fronteiras da América do Sul, chegando à Europa. Até então, Maria, Maria contava apenas com os la-la-las e outras firulas de Bituca a partir da estrutura melódica que expressava o poder daquelas mulheres, com a curadoria de Brant.
A Turma do Levy, após muitas noites pelos corredores, já havia se mudado há tempos para o boêmio bairro de Santa Tereza, zona leste de Belo Horizonte. Seu Salomão, o patriarca dos Borges, pegou a filharada e resolveu deixar o centro da capital. Foi lá pra Santê, levando junto toda aquela gente boa de verso e de prosa. E perto da casa da família, no encontro das ruas Paraisópolis com Divinópolis, desenvolveram uma nova comunidade: nascia o Clube da Esquina. Não se tratava de nenhuma agremiação esportiva. Era apenas uma instituição musical imaginária, erguida a partir de um desejo imenso de fazer músicas. O Clube virou nome de disco em 1972, com grande repercussão. Seis anos mais tarde, um novo volume se fez necessário, reunindo a nata dos primeiros bolachões e trazendo novos parceiros como Flávio Venturini, Tavinho Moura, Toninho Horta, entre outros. Milton era autor de boa parte das músicas, num disco com forte sonoridade latina. O sucesso internacional de Maria, Maria pedia, enfim, uma letra que expressasse aquele furor feminino visto no balé dos Pederneiras.
Inspiração para a dança que percorreu o mundo, aquelas mulheres negras, trabalhadoras incansáveis, com suas histórias de vida sofridas e, ao mesmo tempo cativantes e edificantes, cheias de significados, estavam na alma do poeta por uma vida inteira. Milton fizera todo o trabalho musicado a partir dos relatos de Brant, que finalmente conseguira traduzir todo aquele sentimento em tom de homenagem - sem perder os la-la-las e outras brincadeiras vocais marcantes de Milton para o balé do Grupo Corpo - no disco Clube da Esquina 2, lançado naquele mesmo ano.
É um dom,
uma certa magia
Uma força
que nos alerta
Uma mulher
que merece
Viver e amar
Como outra
qualquer
Do planeta
Maria, Maria
É o som, é a
cor, é o suor
É a dose
mais forte e lenta
De uma gente
que ri
Quando deve
chorar
E não vive,
apenas aguenta
Mas é
preciso ter força
É preciso
ter raça
É preciso
ter gana sempre
Quem traz no
corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a
dor e a alegria
Mas é
preciso ter manha
É preciso
ter graça
É preciso
ter sonho sempre
Quem traz na
pele essa marca
Possui a
estranha mania
De ter fé na
vida
Mas é
preciso ter força
É preciso
ter raça
É preciso
ter gana sempre
Quem traz no
corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a
dor e a alegria
Mas é
preciso ter manha
É preciso
ter graça
É preciso
ter sonho sempre
Quem traz na
pele essa marca
Possui a
estranha mania
De ter fé na
vida
Ah! Hei! Ah!
Hei! Ah! Hei!
Ah! Hei! Ah!
Hei! Ah! Hei!!
Lá Lá Lá
Lerererê Lerererê
Lá Lá Lá
Lerererê Lerererê
Hei! Hei!
Hei! Hei!
Ah! Hei! Ah!
Hei! Ah! Hei!
Ah! Hei! Ah!
Hei! Ah! Hei!
Lá Lá Lá
Lerererê Lerererê!
Lá Lá Lá Lerererê Lerererê!
Um desabafo, se me perdoam.
A influência de Milton, Brant e outros mineiros na musicalidade de Elis é patente, extensamente registradas em biografias e resenhas sobre a vida e obra da cantora. Mesmo assim, não há uma menção sequer a eles no filme considerado a cinebiografia da pimentinha. Quando assisti no cinema, embora tenha me emocionado bastante ouvi-la com a potência dos equipamentos de som na sala de exibição, desmoronei de raiva diante do silêncio sobre os encontros dela com a música mineira. Enfim!!!
Filmes de ocasião, mais preocupados com escândalos amorosos que com o talento artístico, entram e saem do circuito.
Maria, Maria sobrevive, altiva e poderosa como Elis e tantas outras mulheres, negras, brancas, orientais, transgênero etc etc etc que também entendem exatamente o que as palavras de Fernando Brant e a música de Milton Nascimento querem dizer. E vão continuar dizendo, inspirando mais e mais gerações de guerreiras. Em 2018, ao completar 40 anos do lançamento em disco, a canção ganhou um videoclipe protagonizado por mulheres que representam a diversidade que a música alcança. Zezé Motta, Sophie Charlote, Camila Pitanga e outras participaram da coreografia para mais uma versão potente de Milton para esse sucesso eterno.
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