Belo Horizonte, anos 1980
Alceu Valença estava num momento excelente na carreira. Havia um senso comum, sempre perigoso e simplista, de que os primeiros discos eram bons de crítica mas apenas razoáveis de vendas. Não era de se desesperar, mas foi algo que deixou o poeta pernambucano muito decepcionado. Não bastasse a ditadura militar, a recepção do grande público a seu trabalho não era a que desejava. Pegou a viola e foi passar um ano de 1979 sabático em Paris. Na volta, aí sim. A saudade do Brasil trouxe Coração Bobo que é um côco em homenagem a Jackson do Pandeiro; a hiperfrutada Tropicana que é um hino às delícias nordestinas; sem falar na sensual Como Dois Animais composta a partir de um flagra de dois foliões em suas fantasias de onça e cachorro no calor do carnaval em Olinda. Anunciação foi a cerejinha do bolo naquele início potente de década, antecipando a reabertura política que viria em poucos anos.
Tantos sucessos emplacados, e em apenas três anos, chamaram a atenção da gravadora. A recompensa seria lisonjeira. Alceu foi parar na Holanda para gravar o álbum Mágico, de 1984. Atendeu demanda do novo parceiro da Ariola, a Polygram, a pedido do executivo Cor Van Dyke. O gringo simplesmente se apaixonou pela sonoridade de Anunciação e quis que Valença gravasse na vibe holandesa. Para esse disco ele compôs e gravou Moinhos, numa evidente homenagem ao símbolo máximo daquele país e também aos laços culturais entre Pernambuco e a terra da família Orange. A produção ficou a cargo do guitarrista Paulo Rafael, que até hoje faz parte da banda que acompanha o artista, e direção artística do veterano Marco Mazzola. Você deve estar se perguntando: "- Tá bom, cara. E o que é que isso TUDO tem a ver com Solidão? o motivo de eu estar aqui, lendo tudo isso."
O momento mágico - ahm? ahm? - daquele começo de anos 1980 e que deu tanto status na gravadora para Alceu Valença, não o livrava dos momentos solitários. Algo que atormenta e atropela a alma humana, alvo de tantas obras musicais, cinematográficas e literárias. Alceu se encontrava tremendamente impactado com Cem anos de Solidão, o livro que valeu o Nobel de Liiteratura ao colombiano Gabriel Garcia Marquez. O texto impecável de Gabo abriu várias janelas na imaginação do compositor. Ele costuma contar a história de que estava fazendo uma apresentação no Palácio das Artes, o teatro mais importante de Minas Gerais, localizado bem no centro de Belo Horizonte. Mais uma apresentação sublime, imensamente aplaudida e comemorada, como sempre são as passagens do cantor e compositor pela capital mineira.
Terminada a apresentação, naquele palco tão importante, plateia com mais de 1600 lugares absolutamente lotada, ele foi para o hotel. Sozinho! Diz ele que, no quarto, havia uma varandinha e ele caminhou até a sacada, pra contemplar a já madrugada belorizontina. Uma cidade cosmopolita mas de hábitos interioranos, onde o povo costumava dormir mais cedo que em outras capitais naquele tempo. Olhou para as ruas desertas, contemplou a beleza da lua naquela noite especialmente iluminada. Percebeu então que estava absolutamente só. E pequeno diante da imensidão de um lindo céu estrelado. Encarou a imensidão e sentiu. Percebeu as horas custando a passar, encontrou-se com a angústia de se sentir com ele e mais ninguém, embora ainda sob a adrenalina do aplauso da multidão encantada. Tomado pela prosa poética de Garcia Marquez, começou ali mesmo a escrever a letra de um de seus maiores sucessos naquele ano. E que entraria pro repertório permanente do artista.
A solidão é fera
É amiga das horas
É prima-irmã do Tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração
A solidão dos astros
A solidão da lua
A solidão da noite
Alceu: o artista nordestino mais universal do Brasil |
Alceu Valença estava num momento excelente na carreira. Havia um senso comum, sempre perigoso e simplista, de que os primeiros discos eram bons de crítica mas apenas razoáveis de vendas. Não era de se desesperar, mas foi algo que deixou o poeta pernambucano muito decepcionado. Não bastasse a ditadura militar, a recepção do grande público a seu trabalho não era a que desejava. Pegou a viola e foi passar um ano de 1979 sabático em Paris. Na volta, aí sim. A saudade do Brasil trouxe Coração Bobo que é um côco em homenagem a Jackson do Pandeiro; a hiperfrutada Tropicana que é um hino às delícias nordestinas; sem falar na sensual Como Dois Animais composta a partir de um flagra de dois foliões em suas fantasias de onça e cachorro no calor do carnaval em Olinda. Anunciação foi a cerejinha do bolo naquele início potente de década, antecipando a reabertura política que viria em poucos anos.
Alceu na Holanda com Lampião no peito |
Tantos sucessos emplacados, e em apenas três anos, chamaram a atenção da gravadora. A recompensa seria lisonjeira. Alceu foi parar na Holanda para gravar o álbum Mágico, de 1984. Atendeu demanda do novo parceiro da Ariola, a Polygram, a pedido do executivo Cor Van Dyke. O gringo simplesmente se apaixonou pela sonoridade de Anunciação e quis que Valença gravasse na vibe holandesa. Para esse disco ele compôs e gravou Moinhos, numa evidente homenagem ao símbolo máximo daquele país e também aos laços culturais entre Pernambuco e a terra da família Orange. A produção ficou a cargo do guitarrista Paulo Rafael, que até hoje faz parte da banda que acompanha o artista, e direção artística do veterano Marco Mazzola. Você deve estar se perguntando: "- Tá bom, cara. E o que é que isso TUDO tem a ver com Solidão? o motivo de eu estar aqui, lendo tudo isso."
Capa e vinil do disco Mágico de 1984 |
O momento mágico - ahm? ahm? - daquele começo de anos 1980 e que deu tanto status na gravadora para Alceu Valença, não o livrava dos momentos solitários. Algo que atormenta e atropela a alma humana, alvo de tantas obras musicais, cinematográficas e literárias. Alceu se encontrava tremendamente impactado com Cem anos de Solidão, o livro que valeu o Nobel de Liiteratura ao colombiano Gabriel Garcia Marquez. O texto impecável de Gabo abriu várias janelas na imaginação do compositor. Ele costuma contar a história de que estava fazendo uma apresentação no Palácio das Artes, o teatro mais importante de Minas Gerais, localizado bem no centro de Belo Horizonte. Mais uma apresentação sublime, imensamente aplaudida e comemorada, como sempre são as passagens do cantor e compositor pela capital mineira.
Terminada a apresentação, naquele palco tão importante, plateia com mais de 1600 lugares absolutamente lotada, ele foi para o hotel. Sozinho! Diz ele que, no quarto, havia uma varandinha e ele caminhou até a sacada, pra contemplar a já madrugada belorizontina. Uma cidade cosmopolita mas de hábitos interioranos, onde o povo costumava dormir mais cedo que em outras capitais naquele tempo. Olhou para as ruas desertas, contemplou a beleza da lua naquela noite especialmente iluminada. Percebeu então que estava absolutamente só. E pequeno diante da imensidão de um lindo céu estrelado. Encarou a imensidão e sentiu. Percebeu as horas custando a passar, encontrou-se com a angústia de se sentir com ele e mais ninguém, embora ainda sob a adrenalina do aplauso da multidão encantada. Tomado pela prosa poética de Garcia Marquez, começou ali mesmo a escrever a letra de um de seus maiores sucessos naquele ano. E que entraria pro repertório permanente do artista.
A solidão é fera, a solidão devora
É amiga das horas prima irmã do Tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração
É amiga das horas prima irmã do Tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração
A solidão é fera
É amiga das horas
É prima-irmã do Tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração
A solidão dos astros
A solidão da lua
A solidão da noite
A solidão da rua
Sobre o disco, o crítico carioca Mauro Ferreira escreveu:
"Décimo álbum da discografia de Alceu, Mágico propagou a densa balada Solidão (...), mas, a rigor, diminuiu a intensidade do fluxo do sucesso tardio do cantor ao ser lançado em 1984 sem deixar de reforçar a assinatura singular do artista (...) Como hábil ilusionista, Alceu embolou ritmos no álbum Mágico no tempo agitado que sempre pautou a obra do artista. Cambalhotas (Alceu Valença) abriu o disco como se fosse rock e depois deu a impressão de ser samba sem ser nem uma coisa nem outra. Nem embolada. Nem samba-rock. Era Alceu Valença, em rota que o levou à Holanda, país que tentou colonizar o povo pernambucano em invasões dos territórios de Recife (PE) e Olinda (PE) entre 1630 e 1654.Três séculos depois, foi a vez de nativo de São Bento do Una (PE), de visão contemporânea e sotaque universal, ir para a Holanda demarcar o território musical brasileiro na gravação de Mágico, disco feito sem truques. A única mágica de Alceu Valença neste álbum de 1984 foi mostrar que, independentemente de ter (ou não) o massivo apoio popular, o artista sempre pulsou firme com cancioneiro alimentado pela força elétrica desse alquimista embolador de ritmos(...)"
No vídeo abaixo, ele conta a história da música.
Solidão é o resumo dessa grande fábrica de poesia instalada na mente do compositor, que ama capturar momentos como insumos criativos. Alquimista da arte, transforma fragmentos do dia - ou da noite - em letras e músicas, trazendo junto histórias e mais histórias sobre cada canção que escreve. Parece que tudo, tudo mesmo, é capaz de inspirar Alceu Valença. De romances inusitados a questões filosóficas complexas, ele traduz cada sensação com o olhar superior dos gênios.
E sem perder de vista a simplicidade.
Pesquisa: Robson Leite
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