A HISTÓRIA DO "SAMBA DO ARNESTO": Liberdade poética

O parto de uma canção passa por processos criativos absolutamente particulares. Chico Buarque costuma caminhar para encontrar a inspiração. João Bosco envia uma ideia de tema a seus parceiros a partir da melodia que cria. Carlinhos Brown navega na sonoridade dos fonemas. Cada artista faz de um jeito. Conta uma história, brinca com palavras, inventa poesia. Ou brinca com uma história, inventa palavras, conta poesia... enfim... a ordem das coisas e a maneira de cada um produzir pertence, absolutamente, a cada um.


Digo tudo isso pra introduzir como nasceu o famoso Samba do Arnesto.

O Arnesto nos convidou
Pr'um samba, ele mora no Brás
Nós fumos, não encontremos ninguém
Nós vortermos com uma baita de uma reiva
Da outra vez, nós não vai mais
Nós não semos tatu (2x)

No outro dia encontremo com o Arnesto
Que pediu desculpas, mas nós não aceitemos
Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa
Mas você devia ter ponhado um recado na porta

Um recado ansim: 
"Ói, turma, num deu pra esperar
Ah, duvido que isso num faz mar, num tem importância
Assinado em cruz, porque não sei escrever
Arnesto"

A gravação original é de 1952, mas ela só foi lançada no ano seguinte, num compacto simples gravado por Adoniran Barbosa. Ele compôs a música junto com Nicola Caporrino, que não podia assinar as próprias músicas com Barbosa por causa de um compromisso com uma associação de compositores rival a do parceiro mais famoso. Por isso usava o pseudônimo Alocin, que é o primeiro nome dele de trás pra frente. 
 
Caporrino foi homenageado em Um Samba no Bixiga, cantada pelo próprio Adoniran na versão abaixo, assistido às gargalhadas por Elis Regina. Foi gravada para um especial de TV da cantora nos anos 1970, proporcionando um encontro fabuloso de gerações que rendeu ainda uma versão incrível de Elis para Iracema. Linda demais da conta.


O Samba do Arnesto tem três histórias. Duas estão no livro Adoniran: Dá Licença de Eu Contar (Editora 34 - 2002) do jornalista Ayrton Mugnaini Jr. Segundo o autor, o personagem principal seria uma encarnação do próprio Nicola, que era da Mooca, nunca morou no Brás e tampouco costumava convidar a turma pra roda de samba na casa dele. Aliás, depois de uma vida como compositor e radialista razoavelmente produtiva, o Caporrino largou tudo. Foi ser sapateiro em Tatuí, interior de São Paulo, onde viveu até morrer em 1998. Virou até nome de Rua por lá. O Nicola, não o Alocin. Não confunda.

Nomes e histórias inventadas serão rotinas neste texto.

Por sinal, Adoniran Barbosa também não se chamava Adoniran Barbosa. Ao menos, não desde o berço. Era o nome artístico para João Rubinato, que além de compositor, ganhava um troco com sua voz grossa e rouca inconfundíveis no rádio criando personagens para humorísticos. Adoniran Barbosa era um deles e acabou se tornando mais famoso que Rubinato. Nada mal pra um entregador de marmita que aprendeu sua arte de forma absolutamente intuitiva. Isso fica muito claro no jeito de escrever e interpretar canções.

Homenagem do Google a Adonoriran Barbosa

Outra versão pra história, no mesmo livro, revela que Adoniran fez o samba pra um Arnesto que também não era Arnesto. Seria o Ernesto Caporrino, irmão do Nicola. Esse sim, como diz a letra, um morador do Brás. Em determinado trecho do livro, copiado abaixo, Barbosa teria contado a seguinte história em 1972:
 

Mas o Arnesto ainda mais famoso é outro, que teve muita mídia por ocasião do centenário do Adoniran Barbosa em 2010. O sotaque divertido e típico do bairro de influência italiana de onde vinha Adoniran - filho de imigrantes da região de Veneza - transformou Ernesto Paulelli, músico da velha guarda paulistana, em outro Arnesto de samba. Muito provavelmente, o autêntico. Mas não muito diferente de outros personagens das histórias contadas por ele em diversas canções. 

 

Em diversas entrevistas, Paulelli conta que conheceu Adoniran por acaso em 1938. Ele tocava violão para apresentações da cantora Nhá Zefa e costumava acompanhá-la nas emissoras. Trombou com o sujeito numa dessas apresentações e Barbosa pediu a ele um cigarro. Ernesto não fumava. Pediu então um cartão de visita ao violonista - vai que precisaria de algum no futuro! E ele tinha, afinal não vivia só de música. 
 
Era também representante comercial de uma famosa marca de cera. Adoniran bateu o olho no nome ali escrito e leu em voz alta, com aquele sotaque engraçadíssimo: "Arneeeeeeesto". Ernesto tentou corrigi-lo "é Ernesto, com E". Sem sucesso. "Ernesto não dá samba"- teria dito - "Arnesto dá! Aduvida?!" desafiou, caprichando ainda mais no sotaque indefectível. E completou. "Pode cobrar que eu vou fazer um samba pra você!"

Os dois continuaram se encontrando nos bastidores das emissoras de rádio, embora nunca tenham desenvolvido uma grande amizade. Tanto que o Ernesto Paulella só foi ouvir a música em 1955. Disse que foi pego de surpresa, quando escutava rádio. A esposa dele até chorou. Surpresa mesmo. 
 
E olha que o Samba do Arnesto que ele ouviu já era a gravação dos Demônios da Garoa, que fez muito mais sucesso que a original, gravada três anos antes. O Adoniran, pasmem, nunca fez parte do grupo. Ele era apenas o compositor mais famoso das canções que executava, catapultando a carreira dos Demônios pro patamar que se encontra até hoje. E levantou a dele também, certamente. Tanto que um nome parece grudado no outro.


O detalhe é que a história original também não aconteceu com esse Ernesto. Segundo Paulelli, ele nunca convidou quem quer que fosse pra um samba no Brás, bairro onde de fato nasceu. O resto é que ele garante: foi inventado. O Arnesto, que era Ernesto, contou a história em uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 2008.


A saber: o processo criativo de Adoniran era totalmente aleatório. Um nome, uma situação, um bate-papo qualquer na esquina, era o gatilho pra sair uma composição. Consta que Iracema nasceu de uma investida romântica dele sobre uma bela notívaga. Como não deu certo, ele teria chegado perto da moça e dito: "Vou te matar!" E o fez, na contramão de qualquer violência doméstica. Matou poeticamente, de maneira tragicômica. E o fracasso fez nascer uma das letras mais tristes e líricas da MPB. Adoniran era, como Noel Rosa para o Rio, um cronista do cotidiano de São Paulo. 

Pra encerrar qualquer dúvida sobre quem é quem na história que propusemos contar: numa entrevista à TV Record em 2010 postada abaixo, Ernesto Paulelli mostrou uma partitura original do Samba do Arnesto com dedicatória a ele, assinada pelo próprio autor.


Paulelli faleceu em 2014, aos 99 anos, carregando esse orgulho da eternidade musical. E ele segue vivo MESMO, dentro de um Trem das Onze que insiste em passar na cabeça da gente, sentado em bom lugar. Ao lado dele, Iracema, Matogrosso, Joca e outras criaturas que habitaram (ou não) os redutos italianos da capital paulistana. 
 
Essas criaturas da poética "adonirana" foram reunidas num belíssimo curta metragem de 2016 chamado Dá Licença de Contar (clique para ver na íntegra), escrito e dirigido por Pedro Serrano, com o sensacional Paulo Miklos no papel de Adoniran Barbosa. 


O resto é história.

Pesquisa: Robson Leite

Comentários