A HISTÓRIA DE "JÁ SEI NAMORAR": Do K7

 
Não sei se você concorda. Músicas nascem pro mundo, mas não pra todo mundo. Elas começam como parte de um processo artístico que envolve muita intuição e elaboração. Já falamos disso por aqui. Às vezes a melodia vem primeiro, às vezes ela surge a partir de uma letra. Não existe fórmula. Mas ela, a música, vem primeiramente como algo muito íntimo. Um insight, mesmo um exercício. Não necessariamente é entendida de cara. Pode demorar pra ganhar corpo e, nesse limbo, até ficar inerte. Mas uma vez que ela deixe essa intimidade pra se tornar peça de apreciação pública, tudo é possível.  

No finalzinho dos anos 1980, Marisa Monte chegou da Europa cheia de gás. O show Veludo Azul, com produção musical de Nelson Motta, lotava plateias no Rio e Sampa. Esse espetáculo se transformaria no disco MM, as iniciais da diva. O disco é considerado uma das maiores sensações da indústria fonográfica daquela década, lançando Marisa das rodas cults para o estrelato pop. A faixa Bem Que Se Quis seria um dos hits de 1989, fazendo parte da trilha sonora da novela O Salvador da Pátria. O clipe no Fantástico foi um desbunde. O Brasil inteiro se apaixonou por Marisa Monte já naquele ano. 


Esse disco tem Comida, uma letra de Arnaldo Antunes feita para o disco Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas (1987) dos Titãs, mas que se encaixou como uma luva no repertório eclético da cantora. Marisa conta que foi paixão à primeira ouvida, que ela rapidamente foi incorporada ao show Veludo Azul e os Titãs convidados para o show na boate Aeroanta, em SP. E eles foram. Alguns deles. Arnaldo, inclusive. Nesse dia, o produtor de Marisa, Lula Buarque de Hollanda - sobrinho de Chico, então namorado de Letícia, irmã dela - foi quem avisou que os caras estavam lá. E que o Arnaldo havia topado, inclusive, dar uma canja no show. Algo muito sugestivo: canja, comida... é... tava ficando uma delícia o negócio.

Na hora da apresentação, beleza. Mesmo sem ensaio nem nada, sem sequer ter sido formalmente apresentada a ele, os primeiros acordes já executados pela banda, Marisa convida Arnaldo pro palco pra fazer o tal dueto. E nada de ele aparecer. Ela enrola, insistindo no convite. "Arnaldo, cadê você?" Após algum tempo sem se manifestar, Antunes finalmente resolve emergir da plateia e os dois cantam juntos o hit pela primeira vez. Marisa Monte só ficou sabendo após o show que Lula não havia combinado absolutamente NADA com ele. Que foi uma tremenda pegadinha. Felizmente, o talento de ambos minimizou celeumas e acabou permitindo um encontro artístico que melhoraria ainda mais e mais com o tempo. 


A amizade instantânea permitiu que Marisa enviasse a Arnaldo uma fita K7 com algumas melodias compostas por ela. Foi quando nasceu a primeira parceria entre os dois: Beija Eu, que contou ainda o auxílio-luxuoso de Arto Lindsay. A música foi um dos destaques do álbum Mais (1991), o segundo de Marisa. Outro disco que vendeu horrores à época. A porteira estava aberta. Os dois fariam outros trabalhos juntos, trocando entre si letras e melodias. Um casamento artístico tão poderoso que gerou, quase duas décadas mais tarde, um projeto ainda mais autoral. Ela e Antunes se juntaram a Carlinhos Brown para formar os Tribalistas. 



O primeiro disco nasceu em 2002. Foi gravado na Bahia e os três reuniram material para elaborar o repertório desse novo trabalho. Marisa lembrou da fita que havia enviado a Arnaldo lá em meados dos anos 1990. Aquela, em que ele havia curtido apenas uma das propostas - e que virou a potente Beija Eu. A amiga insistiu para que ele ouvisse a outra melodia enviada à época, pois acreditava que daria um caldo bom dentro daquela nova proposta sonora. Marisa conta que apresentou novamente a tal fita K7. Para surpresa de Arnaldo, que já não se lembrava mais daquela composição de Marisa. Consta que, em 15 minutos, da melodia surgiu a letra.


Era Já Sei Namorar, faixa que apresentou os Tribalistas para o grande público naquele início de século XXI. Quase vinte anos de gestação, guardada numa fitinha, para surgir com a força que todos conhecemos hoje. Marisa Monte contou essa história na LIVE com a cantora Teresa Cristina, às vésperas de seu aniversário de 53 anos em 1o de julho de 2020 (assista no vídeo acima a partir de 53:40). No papo ela apresentou uma explicação pra esse parto tardio que me marcou muito. Ela disse que "as músicas têm vida própria, elas acontecem quando elas QUEREM acontecer, do jeito que elas QUEREM."

Já sei namorar
Já sei beijar de língua
Agora só me resta sonhar
Já sei onde ir
Já sei onde ficar
Agora só me falta sair
Não tenho paciência pra televisão
Eu não sou audiência para a solidão
Eu sou de ninguém
Eu sou de todo mundo
E todo mundo me quer bem
Eu sou de ninguém
Eu sou de todo mundo
E todo mundo é meu também
Já sei namorar

Já sei chutar a bola
Agora só me falta ganhar
Não tenho juízo
Se você quer a vida em jogo
Eu quero é ser feliz


Não tenho paciência pra televisão
Eu não sou audiência para a solidão
Eu sou de ninguém
Eu sou de todo mundo
E todo mundo me quer bem
Eu sou de ninguém
Eu sou de todo mundo
E todo mundo é meu também

Tô te querendo
Como ninguém
Tô te querendo
Como Deus quiser
Tô te querendo
Como eu te quero
Tô te querendo
Como se quer
Tô te querendo
Como ninguém
Tô te querendo
Como Deus quiser
Tô te querendo
Como eu te quero
Tô te querendo
Como se quer


Fez todo sentido. Poderia ter sido noutro momento, noutro contexto. Mas a letra surgiu para ser daquela melodia, naquele lugar no tempo e no espaço, com aquela mensagem pra entregar pro público. Faz a gente acreditar mesmo em destino, em canções que nascem escritas como obra de muitos acasos. Claro que existe todo um trabalho de elaboração, de marketing inclusive, que favorece tremendamente sua notoriedade. Mas, de um encontro que tinha tudo pra ser desastroso, a música revela seu verdadeiro poder. O de por ordem no caos de cada um e reunir corações. 

Não é genial isso?


pesquisa: Robson Leite

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