A HISTÓRIA DE "O CANTO DA CIDADE": A explosão do Axé

O som que vem do tambor
O canto que ecoou
O chão, a praça e a cor bonita
O tom da pele na flor tem vida
Ela é bonita
Aê aê negro é Salvador 

Este blog adora investigar os caminhos da composição. O que leva uma canção ao sucesso popular? Letra? Melodia? Inspiração? Parece haver tantas variáveis que fica impossível prever qual vai chegar ao topo das paradas. Uma coisa é certa: a percepção conta muito. A letra que abriu esta postagem tem muito a ver com isso. O megahit O Canto da Cidade nasceu com aquelas palavras, mas foi se transformando a partir do trabalho de muita gente boa, até chegar a ser um marco na música pop nacional.


No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, apesar de anos militando no cenário baiano, Daniela Mercury estava chegando em SP como a grande novidade do carnaval de Salvador. A trajetória dela não diferenciava em quase nada de qualquer artista que chegasse de lá. Um circuito de bares, pequenos shows, esse tipo de coisa. Até backing vocal de Ricardo Chaves numa Banda Eva pré-Ivete ela foi. Havia uma cena local desde a década anterior, mas que ainda não havia conquistado o Brasil. Não de forma definitiva. Havia sucessos pontuais.

Uma efervescência afrobrasileira rondava a mídia nacional, com grupos percussivos como o Olodum - que inspirou a Reflexus e a Mel na batida africana e o Araketu no samba-reggae - e a turma dos trios como o Chiclete com Banana e o Asa de Águia. Sucesso mesmo era Luiz Caldas, outro precursor do Axé. Os demais eram ouvidos, mas ainda faltava um marco sonoro pro país. A grande mídia pedia algo mais pop. Essa timeline está no documentário Axé - Canto do Povo de um Lugar (Brasil, 2016) de Chico Kertész.


Daniela e o famoso show no Museu de Arte de São Paulo: o começo
Daí que uma apresentação de artistas "novatos" na capital paulistana juntou milhares de pessoas no MASP. Nele estava quem?? Dona Daniela. Que bombou. Muito. Foi a apresentação mais comentada, por uma plateia que amava o carnaval de Salvador e que, por isso, conhecia bem a baiana novata. Isso fez os bambambans da indústria fonográfica despertarem pra um movimento que tava rolando.
Daniela no Trio Internacionais em 1993
Com as primeiras micaretas, ficaria muito claro que havia, sim, um público disposto a consumir aquela música. Uma coisa que antes parecia não ir além dos blocos carnavalescos. Mas aquela folia em qualquer dia do ano atravessaria a Bahia de Todos os Santos e chegaria em breve a várias outras praças pelo país. Em BH, todo mundo lembra até hoje do Carnabelô. E foi a apresentação de Daniela que abriu os olhos e ouvidos da turma do disco pra o poder desses batuques. 
A Sony Music correu pra contrata-la.


O primeiro trabalho solo foi lançado pelo selo em 1991. Um single. Era Swing da Cor, um batidão com a pegada do Olodum e toda a energia de Daniela Mercury. Aquele bom astral de carnaval na Bahia. Algo que só fez aumentar a expectativa da gravadora sobre o trabalho da cantora e dançarina. Faltava a ela somente a música certa pra estourar de vez em todo o Brasil. Mas os executivos da Sony esperavam que ela fizesse uma coisa mais Pop Latino, um estilão Gipsy Kings.


Daniela havia recebido numa fitinha cassete o material de um compositor chamado Tote Gira. Como a maioria dos colegas de verso e prosa, Gira estava numa situação financeira complicada. Até a fita de aúdio era emprestada. E a música enviada não contava com nenhum apoio harmônico: era no gogó mesmo, e na base da batucada na porta de uma geladeira velha. A letra era aquela que a gente colocou lá no começo. Vai completa agora:

 A cor dessa cidade sou eu
O canto dessa cidade é meu
O som que vem do tambor
O canto que ecoou
O chão, a praça e a cor bonita
O tom da pele na flor tem vida
Ela é bonita


Tote Gira, compositor
Aê aê negro é Salvador
Aê aê o verdadeiro amor
Não diga que não me quer
Não diga que não quer mais
Eu sou o silêncio da noite
E o Sol da manhã
Mil voltas o mundo tem
Mas tem um ponto final
Eu sou o primeiro que canta
Eu sou o Carnaval

É. Parece muito com O Canto da Cidade que a gente conhece. Mas ainda não era, não. Faltava a roupagem certa. A música caiu nas mãos do produtor Liminha. Todo mundo achou meio mais ou menos, mas Daniela Mercury não tirava aquela batida da cabeça. Foi ela que insistiu. Tinha certeza de que aquela música poderia dar certo. E pediu autorização a Tote Gira para fazer interferências na letra. O objetivo seria torna-la algo menos soteropolitana e mais brasileirona. E assim foi feito. A letra mudou um pouco.

 A cor dessa cidade sou eu
O canto dessa cidade é meu
 O gueto, a rua, a fé
Eu vou andando a pé pela cidade bonita
O toque do afroxé e a força de onde vem
Ninguém explica - ela é bonita! 
 Uô ô verdadeiro amor
Uô ô você vai onde eu vou

Capa original do disco

Não diga que não me quer
Não diga que não quer mais
Eu sou o silêncio da noite
O sol da manhã
Mil voltas o mundo tem
Mas tem um ponto final
Eu sou o primeiro que canta
Eu sou o carnaval

Os trechos em amarelo são as mexidas na letra feita pela Daniela, que também alterou a métrica, repetiu estrofes, e estabeleceu um andamento de samba-reggae mais elétrico. Contrariando a Sony, que queria Bamboleooooo Bamboleaaaaaaa. Ela que bateu pé. Mesmo assim, ainda faltava um certo balanço. Daniela Mercury reclamava que não conseguia dançar com a música, o que seria fundamental pra que estourasse. 

O produtor musical Liminha
E coube ao experiente Liminha - que produziu Lulu Santos, Blitz, Kid Abelha, Gilberto Gil entre outros - encontrar o som correto. Acostumado a trabalhar com Pop Rock, ele fez uma imersão na música baiana daquela época em busca dessa sonoridade compatível com as expectativas tanto dos artistas envolvidos quanto do ansioso mercado fonográfico. E foi entre guitarras, teclados e baticuns que saiu a versão definitiva de O Canto da Cidade. Era 1992... nossa...
E o resto é história. 
O Brasil inteiro cantou, depois o mundo. Um presidente mauricinho veio ao chão ao som dessa canção poderosa. O sucesso rendeu a Daniela Mercury um disco de diamante quádruplo. E não parou por aí. Foram prêmios nacionais e internacionais. Até o paranaaam naaaam do Ray Conniff ganhou versão. Daniela virou personalidade planetária em dois tempos. Gravaria, inclusive, um comercial com ninguém menos que Ray Charles para a Copa de 1994, nos EUA.


O sucesso de O Canto da Cidade acelerou o processo de aceitação daquela nova musicalidade baiana que conquistava o Brasil com seus carnavais temporões. E Daniela Mercury foi a responsável por abrir portas não só para as bandas baianas que faziam parte daquilo, mas em especial para outras vozes femininas. Caso de Ivete Sangalo, então na Banda Eva, que seria a próxima a alcançar o estrelato.

Mas essa é outra história!


 
Pesquisa: Robson Leite
a partir de depoimentos à série
Por Trás da Canção - Canal BIS/2015
 

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