A HISTÓRIA DE "CASA NO CAMPO": Construída na estrada

Tavito e Rodrix: casa no campo construída na estrada
 
 
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa compor muitos rocks rurais
E tenha somente a certeza
Dos amigos do peito e nada mais
Eu quero uma casa no campo
Onde eu possa ficar no tamanho da paz
E tenha somente a certeza
Dos limites do corpo e nada mais
 
Eu quero carneiros e cabras
Pastando solenes no meu jardim
Eu quero o silêncio das línguas cansadas
Eu quero a esperança de óculos
E meu filho de cuca legal
Eu plantar e colher com a mão
A pimenta e o sal

Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapê
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros e nada mais

Parece simples de descrever. Mas não é.
 
Casa no Campo é uma canção que remete a uma pausa na vida pra curtições absolutamente simples. A letra parece ser muito clara sobre isso, embora muitos a considerem perigosa. 
 
Foi composta numa época atribulada, auge da ditadura militar estabelecida em 1964, com muita perseguição política e ideológica aos artistas. O protesto contra a repressão dominava composições.
 
E essa letra em especial fugia à rotina daquela MPB militante e libertária. Falava sobre liberdade de outra forma. Parecia não se propor a nada de mais - esconderia mensagens subliminares contra os ditadores do país? 
 
Uma reflexão, um desabafo, de quem tava meio de saco cheio daquela vida sob pressão? E se isso representasse, de fato, grande risco àquele momento? Falar de livre arbítrio? Talvez seja isso que tornou a canção atemporal. Uma ameaça em tempos repressivos.
 
Os versos são do Zé Rodrix, a música de Tavito.

Os dois faziam parte do grupo Som Imaginário, criado para acompanhar as turnês de uma estrela em ascensão: Milton Nascimento. Um timaço. Além dos dois, compunham o grupo ninguém menos que Naná Vasconcelos na percussão, o guitarrista Fredera, o batera Robertinho Silva, o multitalentoso Toninho Horta, entre outros. Todos sob batuta do maestro Wagner Tiso (antes da carreira solo), viajando pelo Brasil em turnês épicas. Não só com o Bituca, mas também com Gal Costa.
 
O Som Imaginário e Milton Nascimento, nos incríveis anos 1970

Consta que foi exatamente numa viagem com a Gal para Goiânia que Rodrix rabiscou a letra:
 
- "(...) Eu viajava de ônibus (...) quando avistei pela janela uma plácida paisagem de macelas-do-campo, contrastando com o difícil momento profissional que eu vivia…” - declarou Rodrix em entrevista.
 
Então, inspirado pela paisagem, ele escreveu a letra ainda na estrada.
 
– "Ele estava com a cabeça um pouco conturbada e foi rabiscando os versos na viagem. (...) Quando chegamos ao hotel, ele virou pra mim e disse: ‘toma, pra você musicar’. Estávamos no mesmo quarto. Sentei e fiz a música na hora, em três minutos. Naquele tempo, a gente vivia um surto de criatividade" - declarou Tavito, famoso por Rua Ramalhete, em entrevista para Bernardo Costa do blog Coisa em 2016.

Tavito nos deixou em 2019, vítima de um câncer.

Nessa mesma entrevista, ele comentou sobre um dos trechos mais icônicos e "misteriosos" da música. 

"– É a Marya Bravo. É ela a esperança de óculos." 
 
O violonista se referia à primeira filha de Zé Rodrix, fruto do casamento com a cantora e escritora Lizzie Bravo
 
Zé Rodrix e Lizzie Bravo
 
Sobre a ex, vale pontuar o ápice da carreira como vocalista: aos 16 anos, Lizzie simplesmente fez parte do coro de Across The Universe, na gravação original com The Beatles nos estúdios Abbey Road, em Londres, no ano de 1968. Não foi só isso. Dividiu - literalmente, dividiu mesmo - microfones com Paul McCartney e John Lennon.

História boa de ler, procure por aí. 
 
John Lennon e Lizzie nos estúdios Abbey Road em 1968
 
A moça ganhou no Brasil e acabou conhecendo muita gente do efervecente cenário musical brasileiro, tudo graças a esse feito. Na verdade, a mãe de Lizzie era atriz e conhecia uma galera também. Foi meio por causa disso que Ms. Bravo e Mr. Rodrix se conheceram. Exatamente num ensaio do Som Imaginário com o Milton, no Rio de Janeiro. Acabaram juntando os trapinhos, ficando juntos por cerca de dois anos.
Marya tornou-se cantora e incluiu Zé na capa do CD de estreia em 2011
 
E a Marya - fruto único desse enlace sonoro - estava realmente a caminho à época da música a qual dedicamos esta publicação. Mas Lizzie revelou uma memória um pouco diferente da de Tavito sobre as referências familiares em Casa no Campo:

- (...) Em março de 1970, conheci e comecei a namorar o saudoso Zé Rodrix, com quem eventualmente me casei e tivemos nossa filha Marya. Poucos sabem, mas sou “a esperança de óculos” e Marya “um filho de cuca legal"(...) - disse, em entrevista à revista Cláudia em 2020. 
 
Confio mais nessa versão.

Zé Rodrix e Tavito em intervalo de show em 2009

Com Casa no Campo, Zé e Tavito partiram pros festivais. Venceram um em Juiz de Fora e partiram pro VI FIC, Festival Internacional da Canção, transmitido pela Globo, pra tentar emplacar a música pra todo Brasil. Não venceram, mas ganharam uma grande fã: ninguém menos que Elis Regina, presidenta do júri, que pediu pra gravar.  
 
Elis no júri do VI FIC
 
Casa no Campo foi incluída no álbum Elis de 1972 pela Phillips. Foi lado B, penúltima faixa de um disco que tinha só umas "bobaginhas" como Atrás da Porta e Águas de Março. Entre outras!!! Não precisa dizer que o disco explodiu inteiro, tornando-se parte do repertório permanente da pimentinha.

 
Elis na casa da família em Serra da Cantareira, SP (revista Manchete -1980)
 
A biografia do Zé, escrita por Toninho Vaz em 2018, traz que ele e Elis tiveram uma conexão poderosa. Quando a cantora partiu, em 1982, Rodrix parou por quase 20 anos dedicando-se mais à publicidade. Havia o Joelho de Porco, mas considerava como hobby. Só voltou pra estrada de novo em 2001 com os parceiros Luiz Carlos Sá e Guttemberg Guarabyra.
 
Capa do disco com a primeira gravação de Casa no Campo
 
A Casa ganhou "moradores" de fora do Brasil, eternizada em gravações da Orquestra de Paul Mauriat e de Orneila Vanoni, cantando em Italiano. Há também uma gravação importante de Tavito e coro à cappela, realizada em 1979.
 
 
Rodrix disse certa vez à Folha de São Paulo que “nunca acreditou muito nesse papo de campo”, considerando-se um sujeito 100% urbano e declarando-se surpreso com o sucesso da canção.

Mas a carreira dele acabou marcada por uma sonoridade classificada como folk, ao lado dos parceiros Sá e Guarabyra - os tais dos "rocks rurais", que ele desejou compor na Casa. E foi isso - e muito mais - que o Zé fez. Compor e compor. Até nos deixar, aos 61 anos, em 2009. 
 
Mas a Casa no Campo continua de pé.
 
 Pesquisa Robson Leite

Comentários

  1. Adorei saber dessas histórias! Obrigada por compartilhar ♥️

    ResponderExcluir
  2. Adoro esta música. Obrigada por contar com tanta riqueza de detalhes.

    ResponderExcluir

Postar um comentário