A HISTÓRIA DE "EU VOU PRA MARACANGALHA": Doçuras e travessuras


Eu vou pra Maracangalha (eu vou)
Eu vou de liforme* branco (eu vou)
Eu vou de chapéu de palha (eu vou)
Eu vou convidar Anália (eu vou)
Se Anália não quiser ir, eu vou só
Eu vou só... Eu vou só...
Se Anália não quiser ir, eu vou só
Eu vou só... 
Eu vou só sem Anália, mas eu vou!

Dizem que Dorival Caymmi costumava gastar muito tempo trabalhando em suas músicas, mesmo as as mais simples. Perfeccionista, não era incomum que demorasse meses ou mesmo anos. Com Eu Vou Pra Maracangalha não foi diferente.

Consta que Caymmi estava no apartamento dele em São Paulo, pintando um de seus autorretratos. Eis que lhe veio à cabeça uma melodia. Algo que lhe pareceu mais promissor do que o desenho, que não estava saindo do jeito que ele queria. Foi quando lembrou-se também da história de um amigo. O Zezinho. Guardem esse nome. A história dele é crucial.

Pronto! 

A lembrança daquele amigo era das antigas, mas letra e música inspiradas numa história com ele saíram numa sentada só, em julho de 1955. Dorival gostou tanto da frase que ficou como nome do quarto disco dele pela Odeon, dois anos mais tarde. Fez um estrondoso sucesso. 

Inclusive no carnaval de 1957.




Mas e aquele Zezinho lá? 
Calma! Devagar. A história é baiana...

Bom, só pra localizar você, Maracangalha é um distrito do município de São Sebastião do Passé, a 57 km de Salvador. Lá funcionava a famosa usina de açúcar Cinco Rios, referência pra todo país e orgulho dos baianos. 

Era moderníssima, com uma capacidade de produção que chegava a 300 mil sacas/ano em seus melhores dias. Manteve-se ativa de 1912 a 1987, quando a indústria da cana declinou. Aí não deu. A Cinco Rios fechou. 

Até hoje o nome da usina segue forte na memória dos moradores da região. Mas Maracangalha é que virou música - graças ao tal amigo de infância de Dorival. Ganhou até gravação com a família Caymmi e Tom Jobim. O encontro abaixo.


Retomando: o Zezinho, aquele amigo de infância, volta e meia era convidado pra visitar os Caymmi. Ainda quando eles viviam no Rio de Janeiro. O Zezinho era muito querido, ele e Dorival tinham muitas histórias juntos etc etc etc. Se quisesse, o Zezinho poderia, inclusive, levar a esposa Damiana. 

E era por isso que "dava ruim" o negócio. 

Essa parte da história é assim relatada na biografia do compositor, escrita por Stella - neta do Dorival:

"- (...)‘toda vez que eu dava a ideia dele vir ao Rio, ele desconversava. Isso me intrigava’. Mas logo depois o amigo se abriu (...)" - em Dorival Caymmi: o Mar e o Tempo (2001).

Zezinho, na verdade, tinha um casamento paralelo numa localidade chamada Itagipe, também na Grande Salvador. Era lá que morava Áurea, com quem ele tinha quatro filhos. E toda vez que precisava dar uma escapada pra visitar a outra família, Zezinho dava essa desculpa: iria pra Maracangalha. A trabalho, claro.

E pra comprovar que esteve lá, sempre levava pra outra casa um saco de açúcar da famosa usina. Segue o relato no livro de Stella Caymmi:

"– (...) como é que você sustenta essa filharada? – O compositor perguntou espantado
– Eu me viro. Respondeu Zezinho.

Mas Dorival queria saber mais

– Como é que você faz para vê-la sem que Damiana desconfie?
– Eu forjo um telegrama para mim mesmo e digo: ‘Eu vou pra Maracangalha’(...)"


A frase ficou por anos e anos na mente de Dorival Caymmi até que finalmente encaixasse em um de seus sambas de roda. Tornou-se um dos mais famosos. 

Ainda sobre o momento da composição, Dorival conta em entrevista que uma vizinha dos Caymmi em SP acompanhava atentamente ao processo de composição de Maracangalha. Dona Cenira queria porque queria saber que música "bonitinha" era aquela que "seu" Dorival estava cantando. 

E com aquela serenidade baiana, ele respondeu com aquela voz grave que estava fazendo uma música, que tinha uma personagem de nome Anália etc. No que foi interpelado pela vizinha:

"– E por que o senhor não põe Cenira, em lugar de Anália?"

Dorival desconversou. Esse depoimento está registrado, foi lançado como parte de um livro que vinha com um disco chamado Caymmi Som, Imagem e Magia (1985)

Vou deixar aqui logo abaixo um trechinho, quando o Dorival até canta a música...


Claro que não podia ter Dona Cenira na letra. 

Já tinha mulher demais na periferia daquela história. Damiana, Áurea. Deixa a Anália, que pelo menos tem sonoridade parecida com Maracangalha. 

Em tempo: "liforme"*é uma maneira bem popular no nordeste de se dizer "uniforme". Aliás, muita gente canta assim. Interessante?

Interessante é saber que Dorival Caymmi, pelo que fiquei sabendo na pesquisa para esta postagem, nunca esteve em Maracangalha. Mas, por causa da música, o município de S. Sebastião resolveu homenagear o compositor com uma pracinha no formato de um violão em seu distrito mais famoso, inaugurada em 1972.
 

Dorival nos deixou em 2008, vítima de um câncer nos rins. 

Mas as músicas e as histórias dele continuam embalando gerações e gerações, inspirando outros artistas, sendo constantemente homenageado com regravações ou mesmo releituras.

E assim, com ou sem uniforme branco ou chapéu de palha e mesmo se a gente não for, Maracangalha vem sempre até a gente.



Pesquisa: Robson Leite

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