Gil e Caetano, no exílio em Londres, posam para foto na Trafalgar Square |
O Rio de Janeiro continua lindo
O Rio de Janeiro continua sendo
O Rio de Janeiro, fevereiro e março
Alô, alô, Realengo
Aquele abraço!
Alô torcida do Flamengo
Aquele abraço
Chacrinha continua
Balançando a pança
E buzinando a moça
E comandando a massa
E continua dando
As ordens no terreiro
Alô, alô, seu Chacrinha
Velho guerreiro
Alô, alô, Terezinha
Rio de Janeiro
Alô, alô, seu Chacrinha
Velho palhaço
Alô, alô, Terezinha
Aquele abraço!
Alô, moça da favela
Aquele abraço!
Todo mundo da Portela
Aquele abraço!
Todo mês de fevereiro
Aquele passo!
Alô Banda de Ipanema
Aquele abraço!
Meu caminho pelo mundo
Eu mesmo traço
A Bahia já me deu
Régua e compasso
Quem sabe de mim sou eu
Aquele abraço!
Pra você que me esqueceu
Aquele abraço!
Alô Rio de Janeiro
Aquele abraço!
Todo o povo brasileiro
Aquele abraço!
A música é uma espécie de hino paralelo do Rio, remetendo a personagens e cenários tipicamente cariocas, que também flertam com a Bahia. Mas o que aparenta ser uma grande celebração aos cariocas e ao Rio de Janeiro de uma maneira geral, nasceu de um ato tão arbitrário quanto canalha.
No finalzinho de 1968, Gilberto Gil e Caetano Veloso tiveram que puxar quase dois meses de cadeia. Foram presos depois de uma apresentação com os Mutantes, acusados de fazer uma versão (sic) "subversiva" do Hino Nacional - algo que Gil e Caetano jamais admitiram. Mas! o AI-5 acabara de ser estabelecido no país, fechando o cerco da ditadura, já bastante limitado, contra seus críticos.
Tempos difíceis para artistas com histórico contestador.
Em dezembro de 2018, nos 50 anos da prisão, a Folha publicou: "(...) O regime militar, que já tinha a intenção de enquadrar a dupla, soube do show em dezembro, quando um jornalista (noticiou que eles teriam desrespeitado o hino nacional. Foi o suficiente para oficiais da Academia Militar das Agulhas Negras agirem — é o centro de formação superior das Forças Armadas onde o presidente Jair Bolsonaro estudou de 1974 a 1977 (...)" Caetano apresentou detalhes desse momento no documentário Narciso em Férias. Essa treta está bem resumidinha aqui.
Enfim! Foi punk.
Enfiaram os dois caras em uma viatura - sem maiores explicações - e partiram numa jornada de cinco horas de estrada noite adentro. Os canas não abriram o motivo da prisão, de jeito nenhum. Foi tipo "entra no camburão e cala a sua boca!" Parece que, antes de seguir pro quartel, os militares chegaram a passar na casa do cantor e compositor Geraldo Vandré, mas ele não foi encontrado. Devia estar caminhando e cantando. Enfim. Sorte a dele.
Um a menos pra conhecer a cela da cadeia que aguardava os dois baianos.
Existe muita informação ruim sobre a origem da canção. Costuma-se dizer que o Gil teria composto durante prisão no Realengo, e que ele compôs com muita raiva da situação e tal... que foi irônico nas entrelinhas ou outras coisas reativas do tipo, aquela coisa... bem! Na verdade, isso está registrado em várias entrevistas, eles foram presos em SP e enviados ao RJ para a região militar do bairro de Deodoro, na zona oeste carioca. Aliás, isso virou motivo para uma disputa nos tribunais.
Já conto.
Lilico, o "homem do bumbo" |
Na verdade, a canção seria uma grande homenagem e também uma dolorida despedida. A partir de uma frase que ele ouviu muito no xilindró. "- Aquele abraço!". Uma saudação frequente entre os militares, extensiva a Gil. A expressão era o principal bordão de um famoso humorista da época - Lilico, o "homem do bumbo", uma das atrações do programa Balança Mas Não Cai. Consta que os guardas adoravam imitar o personagem repetindo a frase cômica. Ela ficou na mente de Gil, que dizia na época não saber que era bordão da TV.
Sobre isso, vale mencionar que houve embate na justiça por direitos autorais entre Gilberto Passos Gil Moreira e Olívio Henrique da Silva Fortes, o Lilico. O humorista reivindicava co-autoria da música. Mas os juízes não entenderam assim e a autoria solitária do baiano prevaleceu. Lilico, criado em Realengo, nunca engoliu essa derrota e até escreveu uma música em resposta a Aquele Abraço. Usou outro bordão famoso dele para dar título: É Bonito Isso.
Diferente de canções menos conhecidas como As Vitrines, Futurível e Cérebro Eletrônico, Aquele Abraço não foi composta nas cadeias onde a dupla peregrinou em quase dois longos meses. Libertados numa quarta-feira de cinzas, foram extraditados diretamente do Rio para Salvador. Aqueles vestígios de um carnaval carioca que passou foi fundamental para o clique na cabeça musical de Gil. Ele começou a juntar todos esses elementos para criar a canção.
Mas a ditadura continuava de olho na dupla.
Mesmo inocentados das acusações, Gilberto Gil e Caetano Veloso foram "aconselhados" pelo comando do Exército do RJ a deixar o Brasil. E somente na Bahia ficaram sabendo que estavam proibidos de se apresentar e que deveriam permanecer em prisão domiciliar. Tiveram que retornar ao Rio para conseguir uma autorização especial para fazer dois shows no Teatro Castro Alves na capital soteropolitana.
Prometeram partir logo depois, com o dinheiro das bilheterias.
Foi entre essas idas e vindas ao Rio que nasceu Aquele Abraço. Sobre isso, ele declarou ao livro Todas as Letras:
“(...) Meses depois de solto, eu vim ao Rio tratar da questão da saída do Brasil com o Exército. Na manhã do dia da minha volta pra Salvador, fui visitar Mariah Costa, mãe de Gal; ali, na casa dela, eu ideei e comecei Aquele Abraço. Finalmente eu ia poder ir embora do país e tinha que dizer bye bye; sumarizar o episódio todo que estava vivendo, e o que ele representava, numa catarse. Que outra coisa para um compositor fazer uma catarse senão numa canção?(...)".
Voltando a Salvador, ainda no avião, Gil rabiscou os primeiros versos num guardanapo, enquanto ia mentalizando a estrutura. “(...) Tanto que é uma melodia muito simples, quase um blues. Como eu não dispunha de instrumento, tive que recorrer a uma estrutura fácil para guardar na memória. Quando cheguei à Bahia, eu só peguei o violão e toquei (...)”, lembrou o compositor.
Ela foi lançada nos shows de despedida do Brasil. Essas apresentações foram registradas em disco, o Barra 69, gravado ao vivo. Nele foi registrada, na última faixa, a primeira gravação de Aquele Abraço.
A homenagem a Abelardo Barbosa, o Chacrinha, tem a ver com a relação do comunicador com a turma da Tropicália, movimento cultural iniciado nos anos 1960. Gil e Caetano faziam questão de participar dos programas porque achavam que Abelardo representava o tom revolucionário/popular do movimento.
De acordo com o biógrafo do apresentador, "(...) Aquele Abraço foi muito importante para acabar com o preconceito com o Chacrinha – que existia por ele ser visto como uma coisa brega, de mau gosto”, explica Denilson Monteiro ao site do Itaú Cultural. “(...)Nossa elite só foi aceitá-lo quando Edgar Morin veio para o Brasil e disse que ele era o papa da comunicação brasileira; ali ele ganhou esse status, e também porque o tropicalismo veio e o tornou seu patrono(...)”
E foi graças ao sucesso de Aquele Abraço que Chacrinha passou a ser chamado de "velho guerreiro".
Em agosto de 1970, o Museu da Imagem e do Som - braço cultural do regime - premiou a canção. Gil, exilado na Inglaterra junto com Caetano e a família, abdicou do prêmio por meio do artigo "Recuso + Aceito = Receito", publicado no Pasquim:
"- Se ele [o Museu] pensa que com Aquele Abraço eu estava querendo pedir perdão pelo que fizera antes, se enganou. E eu não tenho dúvida de que o museu realmente pensa que Aquele Abraço é samba de penitência pelos pecados cometidos contra 'a sagrada música brasileira'.
Os pronunciamentos de alguns dos seus membros e as cartas que recebi demonstram isso claramente. O museu continua sendo o mesmo de janeiro, fevereiro e março: tutor do folclore de verão carioca. Eu não tenho porque não recusar o prêmio dado para um samba que eles supõem ter sido feito zelando pela 'pureza' da música popular brasileira. Eu não tenho nada com essa pureza.
Tenho três LPs gravados aí no Brasil que demonstram isso. E que fique claro para os que cortaram minha onda e minha barba que Aquele Abraço não significa que eu tenha me 'regenerado', que eu tenha me tornado 'bom crioulo puxador de samba' como eles querem que sejam todos os negros que realmente 'sabem qual é o seu lugar'. Eu não sei qual é o meu e não estou em lugar nenhum; não estou mais servindo a mesa dos senhores brancos e nem estou mais triste na senzala em que eles estão transformando o Brasil. Por isso talvez Deus tenha me tirado de lá e me colocado numa rua fria e vazia onde pelo menos eu possa cantar como o passarinho.
As aves daqui não gorgeiam como as de lá, mas ainda gorgeiam."
Outra coisa, antes de terminar esse post que já ficou comprido por demais: pra quem não sabe, Gilberto Gil, que é torcedor do Bahia, também é torcedor confesso do Fluminense do Rio. Como assim, então, esse negócio de mandar abraço pra torcida do Flamengo?
Coincidência ou não, no ano em que foi composta a música, o tricolor das Laranjeiras foi à final do campeonato carioca contra um rubro-negro da Gávea favoritíssimo. E o Flu levou. Seria uma zoeira? Ele falou sobre isso em entrevista ao jornalista André Rizek.
Em 2016, por ocasião do aniversário do cantor, o Fluminense abordou a mesma história em seu perfil oficial no Facebook:
Gostou do post? Então, aquele abraço!
pesquisa: Robson Leite
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