A HISTÓRIA DE "SONHO MEU": Virando realidade

Em meados dos anos 1970, Yvonne Lara da Costa estava pronta pra mudar de vida. 

Enfermeira dedicada, com mais de 30 anos de experiência, também fazia excelente trabalho na área de assistência social e terapia ocupacional, especializando-se no atendimento a doentes mentais. Seria considerada, posteriormente, uma das responsáveis por mudanças importantes no tratamento a doentes psiquiátricos no Brasil. Mas, apesar de muito habilidosa em cuidar da saúde das pessoas, ela ouviu o chamado de outra instituição envolvida na cura de quase todos os males: o samba. 

É o resumo de uma ópera muito mais longa e interessante, mas a gente precisa focar na música. 

Dona Ivone Lara viveu em ambiente musical desde a infância. O pai, o mecânico João da Silva, tocava violão de sete cordas. A mãe, a costureira Ermerentina Bento, cantava nos ranchos carnavalescos. Ficou órfã muito jovem e foi criada pelos tios, os responsáveis por ela começar a tocar instrumentos como cavaquinho e desenvolver o dom do canto que herdara de Dona Hemerentina. Fez aulas com Lucília Guimarães, sendo muito elogiada pelo marido dela - um tal de Heitor Villa-Lobos. 

Essa Dona Ivone era mesmo danada. 

A profissional de saúde brilhante também mostraria sua luz como sambista. Isso numa época em que apenas homens dominavam a cena do carnaval carioca. Casada com o filho do presidente da Prazer da Serrinha, ela compôs Nasci pra Sofrer. A canção, considerada o hino da agremiação de Madureira, foi a primeira de várias composições. Mudou-se para a Império Serrano e foi lá que teve a consagração em 1965, com Os Cinco Bailes da História do Rio. Tornou-se a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores de uma escola de samba.

A enfermeira e a sambista dividiram espaço durante muito tempo. 

A historiadora Rachel Valença, co-autora do livro Serra, Serrinha, Serrano: o Império do Samba, amiga de Dona Ivone, disse que "ela cumpriu todos os ritos da sociedade, como casar, ter filhos, cuidar da família. Não foi uma mulher que teve uma vida contestatória a esses cânones sociais. Mas foi feminista no sentido de que sempre acreditou profundamente na possibilidade de ser alguém independentemente do marido e das convenções sociais."

A morte do marido em 1975 permitiu que Dona Ivone Lara se aproximasse ainda mais da turma batuqueira. O finado Oscar Costa não gostava muito daquela história da esposa nas rodas de samba. Acontece que a presença dela nesse ambiente foi ficando cada vez mais frequente e importante na vida da sambista. Após muitos anos ao lado de compositores como Silas de Oliveira (que morreu numa roda de samba) e o baiano Mano Décio da Viola (com quem compôs Agradeço a Deus) começou a escrever para a fina flor da MPB.

De acordo com o jornalista Lucas Nobile, autor de uma das biografias da diva, Dona Ivone Lara conheceu Maria Bethânia em 1978. Foram apresentadas por Rosinha de Valença, uma amiga em comum, no apartamento da violonista em Copacabana. Ivone mostrou pra ela algumas músicas e o autor garante que a cantora baiana gostou muito de Minha Verdade

Mas pirou de verdade quando escutou a compositora cantarolar algo fora do combinado.

Em artigo escrito por Nelson Motta, ele conta que Dona Ivone "(...)explicou que aquele era apenas um trecho, só tinha seus versos iniciais, o refrão 'Sonho meu, sonho meu. Vai buscar quem mora longe, sonho meu'. Bethânia ficou encantada. No mesmo dia, assim que chegou em casa, Dona Ivone ligou para o parceiro Délcio Carvalho e o chamou para completar o samba(...)"

E deu no que deu.

Sonho meu, sonho meu
Vai buscar quem mora longe, sonho meu
Sonho meu, sonho meu
Vai buscar quem mora longe, sonho meu
Vai mostrar esta saudade, sonho meu
Com a sua liberdade, sonho meu
No meu céu a estrela guia se perdeu
A madrugada fria só me traz melancolia
Sonho meu
 
 
Sinto o canto da noite na boca do vento
Fazer a dança das flores no meu pensamento
Traz a pureza de um samba
Sentido, marcado de mágoas de amor
Um samba que mexe o corpo da gente
E o vento vadio embalando a flor

O refrão teria nascido em um sonho da compositora. 

Na biografia da sambista assinada por Nobile - Dona Ivone Lara, a Primeira Dama do Samba - consta que Bethânia exigiu a canção pra ela, do jeito que fosse. Mesmo incompleta! Mas graças ao talento de Ivone e Délcio, em apenas dois meses, Sonho Meu estava no estúdio de gravação para ser lançada no disco Álibi. A gravação original da composição recebeu tratamento de joia, num dueto/duelo entre Maria Bethânia e Gal Costa. 


O vídeo acima é uma preciosidade: tem o registro do encontro de Bethânia, Gal, Rosinha de Valença e Ivone, no palco, cantando a música.
A gravação é de 1979, em comemoração ao dia dos trabalhadores. Dá pra sentir a eletricidade na plateia a cada verso. Foi, de fato, um imenso sucesso popular e abriu muitas portas para Dona Ivone Lara.

Isso aos 56 anos! 

Mais do que um samba curto e fácil de guardar, Sonho Meu também se tornou um dos hinos pela volta ao Brasil dos exilados pela ditadura militar, imposta ao país após o Golpe de 1964. Enfim! Uma canção que embalou muitos e muitos sonhos, que acabaram se tornando realidade.

 

Pesquisa: Robson Leite

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