"Quem conta um conto... aumenta um ponto!"
Já ouviu essa trovinha? Tem a ver com uma tradição secular da humanidade de ouvir e transmitir histórias adiante. Isso muito antes do desenvolvimento da escrita ou mesmo depois, já que boa parte das sociedades permaneceu séculos e séculos ainda analfabeta. Essa oralidade tornou-se traço cultural de nossa espécie.
Contar histórias era algo que dependia da habilidade do narrador em criar atmosferas, florear, esbanjar criatividade, como um solista de jazz. Já os minimalistas poderiam optar pela objetividade, apresentando um texto mais enxuto e direto. E cada um contava do seu jeito, acrescentando ou tirando algum elemento. No fim, era a mesma história. Só que contada do jeito de cada qual.
Eu vi acontecer com Almir Sater e Renato Teixeira sobre Tocando em Frente, composição da dupla gravada por Maria Bethânia no álbum 25 anos e que explodiu na trilha sonora da novela Pantanal de Jayme Monjardim (Rede Manchete - 1990). Um clássico de nascença, considerada uma das músicas mais belas do cancioneiro popular do país.
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais
Mais feliz, quem sabe
Só levo a certeza
De que muito pouco sei
Ou nada sei
O sabor das massas e das maçãs
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir
Seja simplesmente
Compreender a marcha
E ir tocando em frente
Levando a boiada
Eu vou tocando os dias
Pela longa estrada, eu vou
Estrada eu sou
O sabor das massas e das maçãs
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
E no outro vai embora
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
E ser feliz
O sabor das massas e das maçãs
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
E ser feliz
Um sucesso incontestável, mas a história sobre como ela surgiu é um tanto divergente. Mas só nos detalhes. Contadas em momentos diferentes pelos protagonistas, cada uma possui seu charme. Mas é fácil perceber qual é a do violeiro cantador e qual é a do contador de moda.
Almir Sater contou a versão dele em 2012 no programa Viola, Minha Viola da inesquecível Inezita Barroso na Rede Cultura. Lá, Sater disse que estava na casa do parceiro Teixeira e que foi pra lá sem violão algum, convidado para jantar. Pegou um instrumento que pertencia ao filho de Renato e começou a dedilhar algumas notas. A melodia de Tocando em Frente surgiu muito rápido, tão depressa quanto o ímpeto do letrista Renato Teixeira. Letra e música teriam saído prontinhas, junto com o jantar.
Já na versão de Renato Teixeira, o cara da prosa e dos versos, a coisa foi meio diferente. O depoimento é de 2021, para o canal do jornalista André Piunti. Pra começar, o encontro teria sido na casa de Sater. A quantidade de informação envolvida, contando desde o que havia sobre a mesa da casa do casal até a vontade dele de escrever algo usando frases soltas, empresta muito mais credibilidade e dá brilho à narrativa.
Teixeira menciona ainda uma viola novinha, a qual os dois haviam saído pra comprar juntos. Teriam vindo dela os primeiros acordes, que evoluíram para a canção ainda mais rápido do que na primeira versão.
Se em uma foi no tempo de um jantar, na outra durou um café coado no bule.
Em comum, o fato de que Almir Sater achou que a música surgiu fácil demais e que aquilo só poderia ser plágio. A história também toma os mesmos trilhos, com suaves variações, na parte sobre como Maria Bethânia teve acesso a ela. Pra começar, eles não se conheciam pessoalmente.
Isso não impediu a cantora de entrar em contato com ele querendo música pro disco novo. No programa de Inezita, Sater garante ter dito à baiana que tinha acabado de compor Tocando em Frente, mas que ela estava reservada para o parceiro Renato.
Bethânia pediu então que ele cantasse a música pelo telefone, pra que pudesse escutar a novidade. E que, após ouvir letra e melodia, tomou a música pra ela. "Essa música é minha!" teria dito. A versão de Renato é quase a mesma.
Ele só acrescenta que Bethânia pediu o contato dele para Almir, com a intenção de informar ao co-autor de que aquele "plágio" já tinha dona. Decisão acatada de imediato pela dupla, que sabia que onde Maria Bethânia colocasse a voz o sucesso seria garantido.
E foi.
Tocando em Frente seria gravada por inúmeros artistas e, como atestou Renato Teixeira, foi assim que atravessou os tempos sempre com ar de novidade. Com vozes e roupagens diferentes, mas sem perder a simplicidade da moda de violeiro. E criando lendas em volta.
Pesquisa: Robson Leite
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